Liberdades formais, justiça social, Hugo Chávez e Putin
Alguns comentários, que reputo de algum interesse para o esclarecimento dos leitores, sobre um Editorial do PÚBLICO
Dedicou-me o director do PÚBLICO o seu editorial intitulado "Os deveres que a história impõe a Mário Soares". Permita-me que faça alguns comentários, que reputo de algum interesse, para esclarecimento dos leitores.Em primeiro lugar, o título. Não me considero com nenhuns deveres para com a História, sobretudo com H grande. A história deixemo-la aos historiadores. Tenho deveres para com a minha consciência, isso sim, sempre tive, desde que comecei a fazer política, como diz, "há mais de 65 anos". Deveres para com a minha consciência e para com a minha Pátria, que para mim nunca foi uma flor de retórica, mas antes um imperativo moral que me conduziu à política. Sempre considerei a política como uma actividade nobre, talvez a mais nobre de todas, desde que exercida desinteressadamente, ao serviço da comunidade e das ideias que julgo melhores para Portugal.
Para além de sempre ter lutado pela liberdade, como reconhece - 32 anos antes e 33 depois do 25 de Abril, naturalmente em condições muito diferentes -, lutei contra a ditadura fascizante que nos oprimiu, contra o colonialismo, que nos custou, sobretudo após 1961, tantas humilhações e tantas vidas, tão inúteis, lutei e luto pela paz, pelo bom entendimento entre os Estados e as pessoas, sem discriminações, pela Europa, como uma entidade supranacional, e, no plano cultural, contra o obscurantismo, o dogmatismo, o espírito inquisitorial e contra todas as formas de intolerância.
Além de lutar pela liberdade, também sempre lutei em favor da justiça social e contra as profundas desigualdades que afligem, cada vez mais, as nossas sociedades ocidentais, para não falar das outras. Por isso sou socialista, não totalitário, partidário de um sindicalismo livre e do mercado, mas também de um Estado interventivo e justo que impeça e corrija, tanto quanto possível, as grandes desigualdades que o mercado, entregue a si próprio, sempre gera. Foi a isso que chamei, no Verão quente de 1975, socialismo em liberdade, para o diferenciar doutros modelos então em moda. Deve lembrar-se.
Sou liberal, no sentido político do termo, mas não no sentido económico. Nesse plano, sou profundamente crítico do chamado neoliberalismo e da globalização neoliberal que estão a arrastar o Ocidente e o mundo para um desastre fatal, que tenho esperança possa ser invertido, in extremis, a curto prazo. Sou crítico também da chamada democracia liberal, expressão nada inocente, que se tornou muito vulgar após o colapso do comunismo, para a impor como modelo urbi et orbi e a contrapor à democracia social, que deu os "trinta gloriosos anos" de progresso à Europa escandinava e ocidental (CEE).
É esta a minha posição, coerente comigo próprio, que, julgo, tanto lhe desagrada, e o leva, creio, a não querer compreender algumas minhas respostas ao Diário Económico, aliás no seguimento de outras que dei antes e dos artigos que regularmente escrevo, na imprensa portuguesa e estrangeira.
Quanto aos "tiques autoritários" do actual Governo. Lamento decepcioná-lo, mas não são mais do que isso, pequenos tiques. Querer empolá-los, comparando-os às arbitrariedades dos anos sem luz do fascismo, não só representa um inaceitável exagero como um dislate que compromete, por desafiar o senso comum.
Quanto ao problema das liberdades formais a que - diz - não atribuo importância, também está enganado. Salvo erro, fui dos primeiros a levantar essa questão, entre nós, nos anos
de brasa de 1974-75. Disse e escrevi então que as liberdades ditas formais, como a gíria marxista as classificava para lhes tirar importância, são essenciais. Porque sem respeitar as liberdades formais, as substanciais, que têm a ver com o bem-estar das pessoas, perdem muita eficácia e valor, como se viu.
Encerrar uma televisão para calar uma voz incómoda é intolerável. Estou de acordo consigo. Mas não foi esse o caso. Chávez limitou-se a não renovar uma concessão estatal, quando terminou a respectiva concessão, por fazer incitações à violência. O que é muito diferente. Sobretudo quando o Estado em questão foi já vítima de uma tentativa (frustrada) de golpe de Estado violento e o respectivo Presidente eleito, democraticamente, foi sujeito a uma tentativa (também frustrada) de assassinato.
Creia que para mim todos os ditadores são maus. Não gosto de ditadores. Mas não há uns bons e outros maus, consoante estão a nosso favor ou contra, no plano geoestratégico.
Quando tive responsabilidades políticas falei, obviamente, com muitos ditadores, que remédio. Numa escala de zero a vinte, acho que os encontrei de todas as naturezas. Dos chefes de Estado do Brasil, no tempo dos generais, a Mobutu ou a Kadhafi (hoje completamente branqueado), de Ceausescu a Tito ou Gromiko. Um homem político não pode ser nem vestal nem moralista. E falar - como é óbvio - não é mal que se pegue... Nem sequer com terroristas, se necessário. Veja como o seu admirado Bush tem falado, por interposta Condoleezza Rice, com todos quantos lhe parecem necessários, pertençam ou não ao "eixo do mal". No Iraque, no Afeganistão, no Paquistão, na Coreia do Norte, no Irão...
Ocaso de Putin - e da Rússia - é mais sério e grave, porque, muito provavelmente, a Rússia vai alinhar - e oxalá o faça - numa parceria estratégica com a União Europeia. A Rússia foi humilhada e menosprezada, após o colapso do comunismo. Não deveria ter sido. Com Putin, quer se goste ou não, voltou a ser uma grande potência mundial, com a qual não se deve brincar aos mísseis. A menos que sejamos tão insensatos que queiramos atirar a Rússia, contra os nossos interesses, para o triângulo estratégico que pode vir a desenhar-se na Ásia: China, Índia, Rússia. Já pensou nessa eventualidade?
Finalmente não será inútil concluir com Bush, o flagelo maior deste nosso conturbado início de século. Acusa-me de ser antiamericano com a mesma sem razão com que outros (talvez mesmo o Senhor Director, não me lembro bem), no Verão quente de 1975, me acusavam - crime nefando! - de ser pró-americano.
Não. Não sou antiamericano. Não sou, de resto, contra nenhum povo. Sou contra as políticas de certos dirigentes, quando as considero nefastas e perigosas. Foi o caso de George W. Bush, cuja política denunciei - lembra-se disso - antes de ter invadido o Iraque. Medite agora nas consequências desse crime fatal. Pois bem, hoje cerca de 80 por cento dos americanos são críticos severíssimos de Bush e lutam desesperadamente por encontrar uma saída para o terrível imbróglio criado por ele. Não só para os EUA mas para todo o Ocidente, com destaque para o impasse em que tem permanecido a União Europeia, devido à subserviência e falta de coragem de bastantes dos seus dirigentes.
Permita-me que termine revelando-lhe o meu actual estado de alma. Estou muito pessimista quanto ao futuro próximo do mundo. Tudo vai mal. No plano político, desde logo, como hoje é evidente. Mas também no plano financeiro, onde os sinais de uma crise séria generalizada começam a multiplicar-se e a tornar-se muito preocupantes. Para não falar nas questões ambientais e na crise de valores que afecta, como nunca, o Ocidente.
Sabe donde julgo pode vir alguma razão de esperança? Vou surpreendê-lo. Precisamente da América do Norte, terminada a era Bush. Tudo vai ter de mudar, radicalmente, na substância e na forma. Seja qual for o novo presidente. E, com um pouco de sorte, poderá vir alguém capaz de redescobrir o velho pioneirismo e idealismo americano, na linha de um Wilson, de um Roosevelt, mesmo de um Eisenhower (quando teve a coragem de negociar a ameaça do complexo político-militar) ou de um Kennedy, da "nova fronteira". Alguém capaz de redescobrir, pela força das circunstâncias, o way of life americano, os velhos valores da solidariedade, da paz e da utopia, para represtigiar a América no mundo, ajudar a União Europeia a sair do impasse, dar força e sentido às Nações Unidas, lutar a sério, e sem retórica vã, contra a miséria e as pandemias que alastram no mundo, em favor de um ambiente são, dos direitos humanos, da liberdade e da justiça social.
Aceite, senhor director, os cumprimentos deste "ancião", que tende a ser visto como "a voz avisada, cheia de energia e experiência", para usar as suas próprias palavras.
Mário Soares, Ex-Presidente da República
in Público, 15 de Agosto de 2007
andré
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