sexta-feira, janeiro 27, 2006

«A esposa de um homem é o mais dócil instrumento da sua ruína»


Em "As Damas do Séc. XII" (Teorema, s/d, edição original: Gallimard 1995), Georges Duby questiona a autenticidade das cartas de Heloísa a Abelardo, controvérsia que já vem do início do séc. XIX. Mesmo duvidando da sua veracidade, quem ficará indiferente ao ler o que esta mulher, cujas qualidades intelectuais conseguiam «ó prodígio, 'superar quase todos os homens'» (Pedro, o Venerável, abade de Cluny dixit), escreveu ao seu mutilado vir (esposo) e amicus (amante)?
À carta em que Abelardo proclama “Como o Senhor é justo e misericordioso! A odiosa traição de teu tio me fez crescer na virtude, quando me privou desta parte do meu corpo, que era a sede de minha libertinagem e a fonte única dos meus desejos”, Heloísa protesta: “Mas em mim esses aguilhões da carne se excitam mais pelos ardores de uma juventude ávida de prazeres e pela experiência que tive das mais inebriantes volúpias”.
Já antes tinha esclarecido que não desejara o casamento (realizado contra a sua vontade), preferia manter-se, sublinha Duby, «puta, a fim de preservar a gratuitidade do amor entre eles»: “Não esperava nem casamento nem vantagens materiais, não pensava nem em meu prazer nem nas minhas vontades; buscava apenas, bem o sabes, satisfazer os teus desejos. O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto o de amiga sempre me pareceu mais doce. Teria apreciado, permiti-me dizê-lo, o de concubina ou de mulher de vida fácil, tanto me parecia que, humilhando-me ainda mais, aumentaria meus títulos a teu reconhecimento e menos prejudicaria a glória de teu gênio.” (Correspondência de Abelardo e Heloísa. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 95.)
Após o casamento e acabando por aceitar tomar o hábito, Heloísa dirige-se a Abelardo, submissa. «A ele cabe agora cumprir o seu dever de marido. Até então, abandonara-a [...] no Paracleto [mosteiro com vocação pedagógica fundado por Abelardo]. É que ele nunca pensou senão no prazer. Já não pode fruir dela, por isso já não quer saber. Ela, pelo contrário, continua prisioneira do amor, do amor verdadeiro, do corpo e do coração. Tem necessidade dele. No passado, foi ele que a iniciou nos jogos da libertinagem. Que a ajude agora a aproximar-se de Deus.»
Na carta seguinte, a revolta:
«Já não se contém, já não se coíbe de acusar Deus. Porque é que Deus os castigou, e depois do casamento que no entanto repusera a ordem? Porquê só Abelardo? Por causa dela? Pois é bem verdade que se diz 'que a esposa de um homem é o mais dócil instrumento da sua ruína'. Eis o que faz com que o casamento seja mau e que ela tivesse razão em recusar. Impõe-se penitência, mas não é por Deus, é em reparação do que Abelardo sofreu. Foi ele que foi castrado, não ela. A mulher não pode sê-lo. Nem desse modo se liberta das mordeduras do desejo.».
evva

2 comentários:

Anónimo disse...

Porque a mulher é, afinal, um se intelectual e não feixe de emoções proclamado...
A pensar

Daisy disse...

Pelo menos a sua sesta ninguém lhe tira...

Daisy