segunda-feira, março 02, 2009

Ainda o Caramel

Há já algum tempo, escrevi esta crítica sobre "Caramel" com a intenção de a publicar num blog dedicado aos estudos feministas. No entanto, o texto nunca chegou a ser publicado, creio eu por se ter orientado mais para a divulgação de encontros científicos do que para a crítica cinéfila. Como tal, não vejo qualquer problema em publicar o texto aqui. Caso ele venha a aparecer no outro blog, está a ressalva feita.

O açucar das raparigas


Caramel, a primeira longa metragem de Nadine Labaki, apresentada no Festival de Cannes em 2007, e que é o primeiro filme libanês a chegar a um público alargado, permite-nos encontrar um Líbano diferente daquele a que nos acostumaram a televisão ou os jornais. Ao contrário da maior parte dos filmes produzidos nas décadas de 80 e 90 do século passado, cuja temática girava em torno da Guerra Civil (1975-1990) e sobre as suas repercussões, Caramel não procura revisitar o passado conturbado nem focar problemas puramente políticos que ainda persistem, mas sim revisitar o dia-a-dia de pessoas comuns, com a particularidade de centrar a sua atenção no universo feminino. O título do filme e o genérico ao reportarem-se à preparação da substância comunmente usada para a depilação no Oriente, diz ao espectador: “este filme vai falar de mulheres!” O título árabe reforça essa indicação, já que “Sukkar Banat”, para além de designar a mistura depilatória, significa à letra “Açucar das raparigas”.
O filme narra a(s) história(s) de cinco “doces” mulheres que se encontram no salão de beleza “Si Belle” (de notar a homofonia com Cibele, a Magna Mater da Ásia Menor, com poder sobre a natureza e a fertilidade) em Beirute: Layale (Nadine Labaki), esteticista, vive uma relação com Rabih’, um homem casado, mas tem como pretendente Joseph (Adel Karam), um polícia de trânsito; Nisrine (Yasmine al Masri), cabeleireira, perdeu a virgindade com um homem que não é aquele vai desposar em breve, Rima (Joanna Moukarzel), com a mesma profissão, sente-se atraída por mulheres. Jamale (Gisèle Aouad), cliente habitual do salão, mostra dificuldades em lidar com o envelhecimento. Perto do salão fica o atlier de Rose (Sihame Haddad), costureira, que vive com uma irmã mentalmente instável, Lili (Aziza Semaan).
Apoiado num argumento bem-disposto (é pena que muitos dos momentos engraçados do filme advenham da linguagem utilizada pelas personagens e por isso se percam na tradução), com momentos felizes intercalados com acontecimentos menos felizes, o filme reflete sobre as tensões com que as mulheres libanesas lidam no seu quotidiano e que advêm da dificuldade em conjugar os deveres para com as estruturas tradicionais da sociedade – a família, as convenções sociais - com os seus desejos individuais: Rose tem de abdicar do amor para continuar a cuidar da irmã, Layale e Nisrine temem, pelo seu comportamento, envergonhar a família. Nisrine prefere recorrer a uma himenoplastia do que confrontar o noivo e a família com a sua trangressão. O discurso que a mãe de Nisrine lhe faz na noite anterior ao casamento sobre aquilo que a espera, revela o contraste geracional e cultural entre ambas. A cirurgia devolve-a ao espaço ideal da virgindade mas trata-se apenas de uma virgindade corporal, já que emocionalmente a experiência sexual de Nisrine não pode ser apagada.
A tentativa de enganar o tempo como forma de se adequar às convenções sociais tamém é visivel na personagem de Jamale, ao fingir ainda tem ciclos menstruais. É a prova de fertilidade que lhe assegura o lugar na juventude que procura: A sequência de cenas em que as mulheres se juntam para apanhar o ramo no casamento de Nisrine é intercalada com a ida de Jamale à casa de banho, para criar essa ideia. Só depois Jamale se junta ao grupo de mulheres que espera o ramo, as jovens as que ainda podem casar. O casamento – que no contexto libanês significa o espaço social onde o amor pode existir – tem coordenadas temporais circunscritas. E parece mais fácil enganar a passagem do tempo do que remar contra a norma social.
A família é pois um impedimento para a realização pessoal não apenas no que toca às relações sentimentais, mas também no que diz respeito à possibilidade de a mulher decidir livremente sobre a sua imagem: Antes de chegar a casa dos pais do noivo, Nisrine adopta um visual mais conservador; a bela mulher a quem Rima sugere um corte de cabelo ousado evoca a oposição da família para não o fazer; e a mulher de Rabih’ mantém a cor do cabelo inalterada por desejo do marido.
Numa sociedade em que a esfera pública é apenas o lugar de confluência de espaços privados, o espaço público torna-se hostil aos encontros entre pessoas de sexos opostos cuja relação não é socialmente oficial: Nisrine e o noivo são interpelados por um polícia pelo simples facto de conversarem sozinhos na rua à noite; no dia de aniversário de Rabih’, Layale procura um hotel para passarem a noite, mas apenas consegue um quarto numa pensão frequentada por prostitutas, já que os hotéis ditos “respeitáveis” só acomodam casais.
Mas o espaço não comparece apenas como lugar adverso às personagens: o salão de beleza é o lugar que une todas essas mulheres, espaço vedado em princípio aos homens. Contudo Joseph, o pretendente de Layale, entra nesse espaço e prova o agridoce “Sukkar Banat”: sorri, por finalmente se aproximar da mulher por quem suspira ao mesmo tempo que deixa escapar uma lágrima de dor quando Layale lhe depila as sobrancelhas. A sua presença física no filme contrasta com a ausência do amante de Layale, que nunca chegamos a ver, como se essa inexistência visual indicasse que a relação que mantém com Layale se faz mais de ausências do que presenças. Layale acaba por vingar-se de Rabih’ na pessoa da mulher, Christine, ao depilá-la de uma forma intencionalmente dolorosa.
A homossexualidade feminina é abordada através da história de Rima: a sua aparência andrógina pode até ser considerada masculina, quando comparada com as restantes personagens femininas: é a única a usar calças e a única a ter o cabelo curto e a não se maquilhar. A realizadora preocupa-se em mostrar o olhar intenso com que observa outra mulher no autocarro, e a cumplicidade que estabelece com uma anónima e bela cliente para mostrar suas preferencias sexuais. O retrato-cliché de Rima pode resultar não tanto de uma visão estereotipada da lésbica, mas talvez de uma estratégia de enunciação que indicia de forma não explícita um comportamento sexual não consensualmente aceite pela sociedade.
No desenlace, Caramel reconduz as personagens transgressoras a um lugar que obedece ao statu quo social: Layale abandona o amante, Nisrine re-torna-se virgem e Rose esquece o seu pretendente. Só a mulher amada por Rima – que sob o seu anonimato pode simbolizar a mulher libanesa - decide cortar o cabelo. Tradição ou modernidade, qual prevalecerá? A opção depende do optimismo de cada espectador.

Joana

1 comentário:

Sónia Duarte disse...

Assim é que é! Desperdiçar um texto é que não!