Não adormeças
Não adormeças: o vento ainda no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.
Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas mais húmidas e chãs
com que em casa se cozinhavam perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.
O meu corpo gela à mingua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu rosto
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.
Maria do Rosário Pedreira
A casa e os cheiros dos Livros
1ª Ed. Lisboa, Quetzal Editores, 1996
[evva]
2 comentários:
Já conheço este. Muito bonito e infinitamente triste.
Gosto cada vez mais da Maria do Rosário Pedreira, que comecei a ler há pouco tempo. Ela vai estar presente na "Corrente d'Escritas", na Póvoa de Varzim, que decorrerá na próxima semana. Que pena não poder ir e depois partilhar o que vi e ouvi com os alunos. Também isso esta ministra nos tirou.
evva
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