terça-feira, fevereiro 17, 2009

A morte da esquerda

A Sónia sugeriu que comentasse um discurso sobre a atidude esquizofrénica da esquerda face à guerra na Gaza. O texto foi escrito por Nadine Rosa-Rosso, a ex-sécretaria do PVDA (o único partido marxista-leninista na Bélgica, que como tal reclama o monopólio da 'verdadeira esquerda'). Ao combinar as qualidades (?) de Belga e jornalista, cabe à mim de réagir, segundo a Sonía. E quem sou eu para duvidar disso?

O texto ao mesmo tempo é problematico e interessante. Problematico porque deixa coincidir Hamas e 'a resistência Palestiniana' e deste modo simplifica o que é provavelemente o mais complexo conglomerado de grupos e formas de resistência, que alguma vez houve num conflito, ocultando também as divergências profundas entre Palestinianos 'minimalistas' (que basicamente querem paz e estabilidade num território que eles controlam) e os 'maximalistas' (que pretendem o fim do estado judaico).
A partir daí a argumentação dá alguns saltos por vezes difíceis a seguir - a esquerda não apoiou o Hamas porque é um movimento fortemente religioso, uma atitude que tem a sua origem no colonialismo e que discrimina neste caso o Islão, já que nos anos oitenta a esquerda não teve problemas em apoiar Helder Camara e outros bispos que na América Latina propagavam a teologia de libertação. Resumindo, Rosa-Rosso acusa a esquerda de discriminar os muçulmanos, tal como o resto do mundo já o faz.
Talvez aqui importe saber que ela em 2007 foi substituida na liderança do PVDA por causa de uma aliança eleitoral falhada com o AEL (Arabisch-Europese Liga). Esta organização, que une sobretudo filhos de imigrados oriundos de Marrocos e da Turquia luta contra o racismo a todos os níveis (também em orgãos e partidos ditos de esquerda) e ficou estigmatizada por que uns líderes foram acusados de instigar uns desacatos que houveram em Antuèrpia apòs o assasinio de um professor de islão. Depois do fracasso da colaboração entre do seu partido e a AEL Nadine Rosa-Rossa ficou convencido que a islamofobia está generalizada, uma tese que repetiu no texto sobre Gaza.

O lado interessante do discurso é que ela provavelmente tem razão, infelizmente apresenta um exemplo errado ao apontar para 'a discriminação' do Hamas, que é, no mínimo, contestado como único represtante da resistência Palestiniana.
O problema em que ela toca é o da morte da esquerda, que se verifica em toda Europa. Porquê os grandes partidos sociais democratas estão moribundos, desde o PS em França ao SPD na Alemanha até os países mais pequenos, como o meu, onde a esquerda tradicional apenas representa 15% do eleitorado? Porque nenhum destes partidos conseguiu formular uma resposta ao problemas como o da imigração que os distinguissem da demagogia e do populismo que rende tanto à direita? E porquê a esquerda dita ortdoxa fica em grande parte fragmentada e não conseguer transmitir a sua mensagem ao eleitorado, apesar de os direitos de trabalhadores nos últimos anos têm sido assaltados cada vez mais desvergonhadamente?

Estas perguntas costumam ter como resposta variações sobre 'o fim das grandes idelogias' e 'o triunfo da sociedade consumista e individualista'. No entanto não creio que seja uma questão de oposições; o indivíduo contra a falta de colectivo, o mundo cristão contra o islão, o occidente contra a suas antigas colónias. Se a era Bush nos deixou acreditar que vivemos num mundo preto e branco, o que ela fez na verdade é massíficar as opinões, empurrá-las para um meio sem substância, onde toda gente pode gritar mas ninguém sera ouvido (a internet mostrou se o instrumento idéal para esta auto-ilusão). Esta massa amorfa é governado pelo centro - daí que uma esquerda fiel a si próprio não tem hipótese - , que abafa qualaquer confronto com o apelo à uma atitude 'razoável' e por isso funciona como um buraco negro que absorve todas as energias, sejam elas social-revolucionárias ou criativos.
Apesar do seu tamanho era sempre fácil de controlar, até agora. O sistema económico em que se baseou a grande 'razoabilidade' abalou, e a ira está de volta. Esta ira, ingénua, fresca, que serve como primeiro passo para revolucionar um modelo existente, como fonte de utopias ou de arte que vai além de mimesis poderá vir a ter uma nova oportunidade..

Wouter

3 comentários:

Esplendor disse...

Depois de ler este post, fico contente por ter pedido ao Wouter para comentar o texto em debate. O nosso amigo, pelo contexto em que vive, pôde trazer novos dados que lançaram nova luz para interpretar o referido texto.

Acho particularmente interessante o recurso à expressão “esquizofrenia da esquerda”. Descrevo o texto da jornalista belga como sendo inquietante (e isso é o que mais me agrada), pois faz a esquerda reflectir sobre si propria e sobre as limitações do seu discurso e da sua prática e ainda sobre as contradições entre um e outro. A verdade é que as há inevitavelmente: faz parte da humanidade de que a esquerda se reveste obviamente e só reflectindo sobre essas contradições a esquerda cresce e se aprofunda através da autocrítica tão enraizada nas organizações comunistas, pelo menos nas de inspiração marxista-leninista.

Desagrada-me por outro lado a expressão “morte da esquerda”, pois a esquerda não é estática, mas sim dialéctica e, nesse sentido, partindo das suas contradições, evolui para novas formas (como a fenix) ou ajusta as já existentes a novas realidades: isso não é morte: é vida e crescimento e mutação. Também convém desmistificar que uma morte da esquerda representasse o fim das ideologias. O mais assustador é a “ideologia” ambiente que sustenta o sitema capitalista/ liberal (digo-o sem medo à conotação com as as velhas linguagens, pois fazem sentido enquanto existir referente para elas) sem que se dê pela sua presença. É perigoso pensar que as ideias que se confundem com o “status quo” são neutras, porque são tão ideologicamente condicionadas como as que contestam aquele.

Acima de tudo penso que seria interessante partir para a discussão dos seguintes temas:

- o binómio esquerda / direita (o que é e que sentido tem hoje em dia);

- o recurso à violência para a defesa de valores ditos "justos";

- os parâmetros que levam a considerar umas organizações como terroristas e outras não;

- os limites das "etiquetas"/ “rótulo” (comunista, anarquista, fascista, conservador, libertário...) e o seu papel como obstáculos ao entendimento, o que implicaria discutir também os limites da linguagem.


Regressando ao texto de Nadine Rosa-Rosso, critico-o por acusar a esquerda de discrminar os muçulmanos, pois tal parece construir uma separação artificial: a esquerda também é muçulmana (como a própria jornalista, por outro lado parece não esquecer) e nem todos os palestinianos/árabes serão muçulmanos. Por outro lado, elogio-o. porque, se, por um lado, simplifica realidades, como o Wouter aponta, por outro, desmonta imagens redutoras muito difundidas, e nada inocentemente, pela “ideolgia ambiente”: a de que a esquerda (assim sem mais detalhe) apoia o Hamas. Esse é um aspecto (a desmontagem) que eu, como comunista, agradeço.

Sónia

Esplendor disse...

Quando me referi à 'morte da esquerda' era, claro, para fins provocativos, mas também para usar a terminlogia dum debate existente. Este discussão trata também do binómio esquerda/direita que tu mencionaste, já que parte do principio que depois da queda do muro a diferença entra esquerda e direita se reduziu à mais ou menos intervenção do estado no mercado livre.
Por isso estes tempos são tão interessantes. Em vez do 'fim da história' vivemos um periódo onde tudo está outra vez posto em causa - lembro me em particular um editorial no Financial Times em Outubro, que fazia um apelo quase patético para não desistir do sistema de um mercado livre, falava daí um medo existential.
Daí também a minha conversa sobre o centro que se pode estár a dissolver. Nas franjas deste tecido farrapado podem crescer talvez alternativas ao consumismo cego que em 2008 morreu.
(volto para comentar os outros temas)
Wouter

João Sá disse...

Vou partilhar aqui um comentário que fiz, por email, sobre o discurso que a Sónia propôs.

O texto é interessante. Está claro e reflecte uma posição válida, mas tenho algumas reticências. Primeiro acho que cai no erro de generalizar a esquerda, apesar de no fim se contradizer, dizendo que ela é de esquerda mas tem uma posição minoritária. O termo esquerda significa muitas coisas, e cada vez mais coisas, não apenas quem se senta(va) à esquerda nas cortes francesas...
Acho que é um texto que centra a questão apenas nos aspectos políticos e religiosos, portanto acaba por cair no mesmo erro que aponta às esquerdas. Penso que isto deve ser levado para uma dimensão mais humana, do ponto de vista individual. Para resumir:
- Cada ser humano é limitado.
- Nenhum ser humano reage da mesma forma que outro aos mesmos estímulos.
- O ser humano é um ser cultural. Por muito que tente libertar-se, está sempre imbuído de um conjunto de valores provenientes do meio onde cresceu e foi educado.

Há no texto algumas frases com as quais concordo totalmente e ajudam a perceber o que eu quis dizer:
What can be understood by an Israeli Jew, the European Left fails to understood (as etiquetas...)
The fear of being classified 'terrorists' or apologists of terrorism has spread. (as etiquetas, sempre as etiquetas...)
Esta frase, que aparece no início do texto, coloca a questão num outro nível: "Support for the people of Gaza exists only at a humanitarian level but not at the political level.". Ainda bem que isto acontece. Mas deixa-me a pensar noutro assunto. Quando defendemos, e eu penso que devemos defender, valores como a diversidade, a paz, a tolerância, a fraternidade e tantos outros, o que fazer se alguém põe em causa esses valores?
Se eu defendo a paz e alguém defende a guerra, quer dizer que quem defende a guerra ganha? Porque se eu nada fizer, estou condenado a desaparecer, se me defender, sou obrigado a usar violência (e assim também perdi porque não estou a respeitar a paz que defendo).
Resumidamente, é isto que resulta deste choque civilizacional. Por outro lado, colide com a diversidade. Há "diversidades" que funcionam bem em conjunto, há outras que não. Grandes dilemas!

Contrariamente ao que me parece ser o entendimento de muitos, o terrorismo não é desprovido de valores. Pelo contrário, é provido de valores sentidos (e praticados) com grande intensidade. Se "os terroristas" consideram que para fazer valer os seus valores têm de eliminar quem os afronta, o que fazer?

Acho que tudo seria mais simples se todos colocassem acima de qualquer outro valor o humanismo (no sentido de defesa da humanidade, simultâneamente no que respeita ao colectivo e ao individual). A partir daqui poderíamos partir para muitas e feias discordâncias, mas sempre com a salvaguarda de respeito pela vida humana. O problema é que nem todos pensam assim... O que fazer então?
Eu não sei, mas recuso caminhos de fundamentalismo, sejam políticos, ideológicos, religiosos ou quaisquer outros. Acho que é um caminho possível.

(Acrescento agora mais alguns pontos).
Esta discussão é válida e interessante mas é urgente evitar que mais gente morra e/ou sofra. Por muita ideologia e discussão que se tenha, neste ponto é preciso ser pragmático e consequente.

Voltando ao abstracto, é preciso clarificar o que entendemos por esquerda e por direita. Quais são as fronteiras? Onde se encontram? Onde se afastam?

O caminho para sair da(s) crise(s) (não apenas do conflito em Gaza) não estará na verdade que encontramos e devemos procurar em cada um de nós, deixando de lado, tanto quanto possível, as influências permanentes de grupos, organizações, instituições, etiquetas, preconceitos, ...?