«Nunca conheci um professor que gostasse de avaliar; é ingrato; quase sempre injusto. Mesmo em ciências exactas é difícil avaliar justamente as aprendizagens. Um bom aluno pode mostrar-se incapaz de realizar um exercício específico, e ter aprendido muito mais do que qualquer outro, globalmente; ser excelente. Por isso, classificações obtidas numa situação de avaliação nem sempre reflectem a aprendizagem realizada. Os professores sabem-no; o ministério sabe-o e, anualmente, emana despachos normativos e circulares inúmeras aconselhando moderação, ponderação, discussão das classificações, que são apenas sugeridas pelos professores das disciplinas, e aprovadas, ou não, pelos conselhos de turma.
É difícil garantir que o aluno da carteira da frente vale exactamente 3 quilos duzentos e cinquenta, e não mais nem menos. A aprendizagem tem portas do cavalo que a avaliação não consegue quantificar. Numa aula, acontece não se aprender o tema da lição, mas outro assunto que não se tinha compreendido antes, no qual não se tinha pensado, ou no qual se vinha pensando sem solução. Faz-se luz de repente. Foi uma aula inútil?
Um bom professor produz este tipo de conhecimento. Flexível. Activo. Crítico. Multidisciplinar. Autosuficiente.
Os alunos de 20 não são necessariamente os mais capazes, mas não é possível negar que sejam quase sempre exemplarmente organizados e disciplinados; cumprem as regras; apresentam soluções convencionalmente certas, mas nem sempre resplandecem, voam. Frequentemente estão presos ao chão com uma cola toda feita de ordem, medo e obediência. Sabem definições de cor. Datas. Fórmulas. Memorizam a gramática de uma ponta a outra, os compêndios chatos, e sabem distinguir conjunção de locução conjuncional. Quase sempre se portam muito bem. Não têm grande sentido de humor. Nem sempre são criativos, mas produzem moeda-classificação. Ouvem-na cair.
Os professores do sistema, sentadinhos na secretária, com seus fatinhos de saia e casaco de fazenda azulinha ou de calça e casaco, cinzentinhos, as mãozinhas brancas de dedo curto com aliança, muito graves e científicos, gostosamente entalados na forma canónica, e incapazes de sair dela, sempre me causaram... borbulhagem.
Gostava dos professores faltistas. Dos que passeavam entre as filas de carteiras enquanto diziam lérias, e a quem chamávamos malucos, mas a cujas aulas íamos com gosto. Daqueles que a gente nem sabia em que parte do programa é que iam.“O que é que o gajo tá a dar?” “Sei lá, deve ser o barroco!” “O barroco não pode ser, que já demos o neo-realismo!”.
Gostava dos que diziam “merda, molhei os sapatos lá fora” ou “hoje estou cheio de gases”, e nos mandavam ler textos sérios pejados de asneiras, divertindo-se com o escândalo entre as meninas: “Tes... ai, tes...tí... bem... posso ler isto?, ai, testí... ti... culo, ai, este texto...".
Gostava dos que se sentavam em cima da mesa a falar sozinhos, despenteados, com mau feitio, e nos ensinavam coisas que a linguagem não contém. E que aprendiam coisas para si enquanto falavam. Estabeleciam uma relação em que não haviam pensado antes, “pois é, pois é”.
Mandavam-nos ver filmes que não eram para a nossa idade e ler livros terríveis. Não creio que seguissem programa, que tivessem planificação, que fossem a reuniões. Não tinham. Chegavam, mandavam umas bocas, dissertavam, divertiam-se que nem uns malucos e quem lhes tirava aquilo, tirava-lhes a vida.
Nos testes ditavam-nos as perguntas, inventadas na hora, e não dava para copiar, embora até pudéssemos... aquilo não estava escrito em lado nenhum.
O que eu aprendi com esses malucos sem método algum, que nunca na vida foram avaliados! Que não poderiam ser avaliados. Porque um bom professor não se avalia. Não é possível quantificar o que ensina. O que eu aprendi a não apodrecer de medo, a pensar mal, mas a pensar, para depois pensar melhor.
A esses professores, esses que eu tive, os faltistas sem método, haviam de lhes aplicar o próximo sistema estatutário de avaliação do desempenho, o tal que o governo vai aprovar com a benção da opinião pública que manipulou com total consentimento das redacções. Chumbavam todos! Era vê-los a cair que nem tordos! Hoje, seriam maus. Nem passavam na entrevista.
A avaliação tornou-se uma obsessão. Como avaliar tudo? Como avaliar um professor? Quanto vale? Quanto pesa? Quanto mede? Como posso ter mais sucesso igual a ter mais dinheiro? Quanto?
Ridículo. Ridículo. Daqui a 10 anos a educação estará na mesma. Pior. A crise na educação não assenta no funcionamento das escolas, mas no da sociedade. A maior parte das crianças chega hoje à escola sem saber o que são valores, ou quais são. É um discurso perdido, que não falam em casa, onde tudo é permitido. Não sabem que não podem sair de uma sala quando querem, porque desconhecem o conceito de regra. Não sabem o que é "isso do respeito". Os professores não conseguem dar aulas porque não conseguem ser ouvidos. Não têm poder para agir, para pedir silêncio.
Daqui a 10 anos a educação estará pior. Os melhores hão-de ser tão robotizados que preferiremos os piores.
É que o problema da educação não está na escola nem nos professores que, como noutras profissões, e em todos os tempos, foram bons e maus.
A crise da escola é o espelho de uma crise social profunda: nada vale nada - apenas o dinheiro e o sexo.»
evva
(sublinhados meus)