Liberdade de espressão III
Sendo jornalista, freelance ainda por cima, talvez possa completar a troca de ideias a cerca da liberdade de expressão que há dias teve lugar aqui. Só para mostrar que se trata dum fenómeno Europeu, provavelmente mundial. Primeiro, alguns factos:
No início de Dezembro foram anunciados, na mesma semana (promenor importante) 100 despidementos em vários jornais e canais televisivos belgas. O número oculta ainda mais outra centena de freelances que viram terminada a colaboração dum dia para o outro. No caso do jornal De Morgen trata-se de 26 pessoas, ou seja um quarto da redação. Teme-se por isso pela sobrevivência deste título. O caso mais gritante foi o dos fotógrafos freelance do jornal Het Nieuwsblad, esses foram simplesmente dispensados, enquanto os jornalistas freelances daqui a diante são obrigados de também fornecer as fotografias. Receberão 16 euro por foto, exactemente a metada do preço que os profissionais pediam (uma tarifa que alias não mudou nos ultimos 15 anos).
A situação na Bélgica é parecida daquela em Portugal, somente 3 grupos economicos controlam todas os principais orgãos da comunicação social. Estes grupos aproveitaram-se da crise para executar os planos de 'racionalização' que estavam na gaveta há muito tempo. Já que na idade da internet o velho modelo economico dum jornal (que viva da publicida) deixou de ser relevante.
Este transformação do sector, sendo inévitavel, não devia ser trágico. Mas graças às opções das editoras, ela leva à uma perda de qualidade, já que tudo tem que ser 'leve' e - excusez le mot - 'sexy'. O resultado é um jornalismo cada vez mais pobre, feito por jornalistas que têm cada vez menos tempo e continuem ser tratados (tal com aqueles outros milhares de pessoas despedidas) sem qualquer respeito. Parece-me claro que, além destes pobres profissionais, só há uma vítima neste história, e esse é a liberdade de espressão.
Prova disso foi a acção do sindicato de jornalistas no dia 8 de janeiro (que se pode ver aqui) , onde apareceram mais de 300 pessoas (um successo numa profissão dita individualista). Os grandes jornais remataram a notícia sobre si próprio para um cantinho da página 20, enquanto outras nem se quer a mencionaram.
Acho que não é exagerado dizer que nestas condições a liberdade de expressão, que nas nossas democracias occidentais tanta gente ainda toma por uma evidência, ésta em perigo.
Wouter
6 comentários:
Na página inicial da Federação Internacional de Jornalistas ( http://www.ifj.org/en/splash ) pode ler-se (perdoar-me-ão a preferência pelo espanhol...): "No puede haber libertad de prensa si los periodistas ejercen su prefesión en un entorno de corrupción pobreza o temor." O destaque dado a esta ideia por uma organização internacional de profissionais da área pareceu-me oportuno para sublinhar a ideia que aqui temos vindo a discutir e que o Wouter -com mais conhecimento de causa do que eu- vem aqui comentar.
Da nota do Wouter gostaria de começar por comentar a própria palavra "freelance" pela conciliação perversa de ideias que encontro na mesma: a ideia de liberdade e precariedade laboral. Curiosamente (dada a fonte, sublinho este termo), encontra-se na wikipedia a seguinte informação: "The term "freelance" was first coined by Sir Walter Scott (1771–1832) in his well-known historical romance Ivanhoe to describe a "medieval mercenary warrior" (or "free-lance")." A mesma ironia encontro no Português "trabalhador independente" ou no espanhol "trabajador autónomo"...
Pronunciando-me sobre o comentário quer do Wouter quer do João (em post anterior) ao sucesso/êxito da luta dos jornalistas belgas, penso que a minha particular sensibilidade para esta questão tem parcialmente a ver com o facto de ser professora. Também os professores, igualmente trabalhadores intelectuais, têm manifestado pouca consciência de classe e também eles recentemente têm evoluído muito notoriamente nesse sentido. Também eles (os professores) têm necessidade de defender a identidade da profissão para defender a profissão e isso, porque, em minha opinião, tal como no caso dos jornalistas, essa identidade é conformada com um compromisso com a verdade / conhecimento/ informação. É nesse sentido que entendo a liberdade de cátedra e nesse sentido vejo a mesma como oposta a doutrina. Num processo de (in)formação o professor /o jornalista nunca ameaça o livre desenvolvimento da consciência/carácter /opinião de cada um.
O sector privado não tem que ser necessariamente um lugar de maior ameaça à liberdade de cátedra ou de expressão dos professores/jornalistas, mas o inverso também não é verdade (não é necessariamente um garante da mesma).
Nos tempos que correm a profissão de professor corre sérios e (reais) riscos de descaracterização em que os professores/educadores se podem ver "convertidos" ( e intencionalizo a carga ideológica do termo) em "funcionários".
em que correm o risco de ser ver "convertidos" os jornalistas? Arautos da ideologia amabiente? Gostava de ouvir outros (particularmente os jornalistas) a este respeito.
Outra questão que julgo que merece comentário neste post do Wouter é menção ao papel das tecnologias nas relações de trabalho. Do meu ponto de vista, sempre que uma máquina consegue substituir um ser humano é porque essa tarefa era indigna do mesmo naquilo em que a substituição (mais uma vez a sensiblidade de uma professora a falar mais alto ;-)...) realmente acontece. O meu ideal de trabalho corresponde a uma tarefa profundamente humana (criativa / formadora) e não ao dispêndio de energia em prol da produtividade/rentabilidade preconizado pela economia capitalista. Se uma máquina fizer alguma coisa que eu faço, bem vinda seja: mais tempo me resta para me dedicar àquilo que verdadeiramente vale a pena e digo isto sem ingenuidade nem demagogia, mas com perfeita consciência de que tal, no actual esquema laboral, traz enormes problemas, pois só é possível noutro tipo de sociedade. Bem vinda seja!
Sónia
Como dizes, nem o professor nem o jornalista ameaçam o livre desenvolvimento da consciência/carácter/opinião/... de cada um, mas podem determiná-la (influenciá-la fortemente). Há aqui uma relação de poder natural (força da inteligência, por exemplo, ou da ausência de espírito crítico). É (também) por isso que defendo a diversidade (de professores e de jornalistas). Essa diversidade faz com que o "receptor" esteja sujeito a múltiplas influências e assim aumente a liberdade de escolha.
Professores e jornalistas têm muito em comum. Tal como os padres... Continuando num contexto de profissões intelectuais, médicos ou juízes, por exemplo, já têm um papel totalmente diferente. Posicionam-se mais como prestadores de serviços. Embora a independência e desejável isenção seja extremamente importante nos juízes - garante de justiça, mas não nos médicos - não é determinante na prestação de um bom serviço.
Por isso, o risco da "funcionalização" dos professores é real e muito perigoso. Seria castrante no que toca à liberdade e à diversidade. Acho mesmo que é incompatível com a cátedra. Tal como para os jornalistas e juízes. Não a acho tão importante no caso dos médicos.
Do meu ponto de vista, sempre que uma máquina consegue substituir um ser humano é porque essa tarefa era indigna do mesmo naquilo em que a substituição
Aqui discordo, embora não totalmente. Há actividades repetitivas, mecânicas, que podem perfeitamente ser realizadas por máquinas/tecnologias facilmente acessíveis e que servirão sempre de satisfação, ritual (para quem deles necessita ou aprecia), etc.
Um exemplo simples: posso imprimir as moradas em envelopes, mas muitas vezes opto por escrever manualmente. O encontro com a escrita é diferente no papel ou no computador (ou mesmo no telemóvel...).
PS: Tenho noção que a escolha das áreas profissionais pode parecer um pouco elitista. Longe de mim tal intenção. Serve apenas como representação de grandes grupos profissionais com forte importância na sociedade.
Não creio que os fotojornalistas sejam são vítimas do avanço technologico. Não são subtituidos por máquinas, mas sim pela estupidês e ganância das editoras - que aliás justificaram a sua decisão com o pobre argumento 'que toda gente sabe mexer numa maquina digital'. Sonham todas ser uma especie de Unilever da comunicação social, um quase monópolio com marcas...oh desculpe..títulos, que vêm ao encontro de todo tipo de consumidor. A oferta na imprensa caminha rápidamente para um entretenimento ingénuo, também os jornais que se diziam 'de qualidade.
O jornalista como 'reporter' ou aquele esteve no lugar onde o leitor/tele-espectador não podia ir (por falta de tempo), já não tem razão de existência quando os próprios jornais pedem seus leitores de os fornecerem imagens que captaram com o seu telemóvel. Torna-se um mero passador de bits que repete as palavras dos outros. Aí concordo com João, o novo jornalista tem de se tornar independente (não no sentido do actual 'freelance'. Sónia acertou en cheio, a única liberdade calha do lado do meu chefe, que me pode despedir sem qualquer custos), para que possa ser um cronista, não arrogante ou com aspirações de guia que aponta para o caminho iluminado, mas aquele que teve tempo para juntar (e controlar) os vários elementos de informação - estas condições, sejamos francos, hoje já não existem.
Quanto a disposição de deixar de trabalhar as máquinas para nós, parece me uma máxima perigosa, sobretudo à luz deste pequena notícia, que hoje encontrei:
Google and Nasa are to back a new school led by controversial futurist Ray Kurzweil that will explore a time when computers are more intelligent than people.
The so-called Singularity University will offer courses on biotechnology, nanotechnology and artificial intelligence. It will be sited at Nasa's Ames Research Centre in Silicon Valley, close to Google's headquarters.
Kurzweil is best-known for developing the Reading Machine, which translates type into words for the blind, and two essential components, the flat bed scanner and optical character recognition. An AI pioneer, Kurzweil believes machine intelligence will outstrip human thinking and usher in an unprecedented era of human leisure.
The school is named after a book Kurzweil wrote that predicts that machines will be cleverer than people within 50 years.(Financial Times, 3/02/2009)
Wouter
O comentário do João relativamente à relação de poder entre professor/aluno ou jornalista/público leitor parece-me bastante pertinente. Fez-me recordar de imediato as primeiras trocas de ideias com a minha ex-orientadora de estágio de Português sobre as fronteiras entre compromisso de valores e doutrina, as quais acabavam por resvalar normalmente para a discussão do conceito de autoridade. Também ela me chamou a atenção para o facto de que o perigo de transformar a educação para os valores em doutrina reside precisamente nesse estatuto de autoridade (científica e moral) do professor sobre o aluno. Mais uma vez, na wikipedia, há uma curiosa relação entre "cátedra" e "autoridade" quando se afirma acerca do primeiro que "na origem do conceito está a cadeira, colocada num plano elevado, na qual o professor universitário medieval leccionava" (sobre o estatuto do professor depois dessa época cf. Luis Gil Fernández (1997): "Panorama social del Humanismo español (1500-1800) ). Sendo que essa é uma questão pertinente e que se prende e muito bem como aponta o João com a ideia de diversidade, ficaria aqui por discutir, algo sobre o que me questiono bastante e que é o princípio da continuidade pedagógica (ou seja que um mesmo professor acompanhe os seus alunos ao longo de todo um ciclo de formação, aplicável, claro está apenas aos professores fora de uma situação de mobilidade).
Não sei se terei entendido a comparação entre os professores e os padres, mas esclareço desde já que rejeito nesta profissão tanto a atitude mercenária, como a missionária... (brinco: julgo que o João também não a estava a defender).
Relativamente à alusão aos médicos, não sei se não será importante sublinhar também neste caso o papel dos valores e da isenção na sua actividade pois muitas são as vezes em que o doente por incapacidade confia no médico para o ajudar em decisões que convocam claramente valores éticos como a eutanásia ou o aborto, para dar apenas alguns dos exemplos mais mediatizados.
Acho ainda que eu é que talvez tenha parecido elitista na concepção idealizada de trabalho que apresentei ao defender o papel das novas tecnologias. Concordo com o João no que ele diz a respeito de actividades repetitivas e automatizadas que, no entanto, são prazeirosas. Julgo que será mais correcto acrescentar ao que eu disse antes que o trabalho deve visar a felicidade do ser humano (e não apenas o lucro, próprio , ou -como é mais frequente - alheio). No entanto, em minha "defesa" devo dizer que, ao referir-me a tarefas menos criativas capazes de ser desempenhadas por máquinas, não estava a pensar no trabalho operário, mas em muitas das tarefas a que estou obrigada como professora: contagem e registo de faltas por exemplo... Por outro lado também não queria insinuar que o Wouter julgava possível a substituição dos foto-jornalistas. A ressalva dele é importante: é o fotografo que sabe ver, não a máquina (manual ou digital). A associação entre "internet" e "racionalização" num mesmo parágrafo é que me levou por esse caminho, que é, aliás, um tema de debate que me atrai.
Relativamente às teorias de Kurzweil, tenho de admitir que sei delas muito pouco, mas que me parecem entusiasmantes do ponto de vista científico. No entanto, entre ciência e felicidade não há necessariamente uma relação de sinonímia...
Sobre o primeiro assunto, acho que é, também, importante distinguir ética de moral. O professor deve dar pistas (principalmente pelo exemplo) para uma aprendizagem e questionamento ético. Já a moral, cada um tem a sua. A ética debruça-se sobre a moral, mas não impõe nenhuma.
Defendo a continuidade pedagógica mas, mais uma vez, sem fazer doutrina da mesma. Sempre que possível, é desejável. Se fosse total, seria indesejável. Era da maneira que os alunos tomariam todos os professores [da mesma disciplina] por igual.
Sobre os padres... a relação a que me referia tem a ver com, quer os padres, quer os professores, quer os jornalistas estarem em posição privilegiada de ameaçar/afectar o livre desenvolvimento da consciência/carácter/opinião/...! Espero que nenhum deles o faça, mas todos têm possibilidade de influenciar um grupo mais ou menos alargado de pessoas a esse nível.
Não defendo, de modo algum, uma atitude mercenária por parte dos professores. Quanto à missão, não tenho nenhuma objecção. Quem considerar que a sua atitude é de missão, porque não?
Claro que a isenção dos médicos tem a sua importância, mas assume particular ênfase apenas em determinadas situações. Na maior parte das situações o médico é um prestador de serviços. Se prestar esses serviços com formação adequada e no respeito pelas melhores práticas [técnicas] será com certeza um bom médico. Talvez não excelente! Ihihi (só por causa da palavra excelente). Até porque, hoje, o exercício da medicina vai muito para além das práticas técnicas (pode parecer, mas não me estou a contradizer). A empatia e outros elementos do domínio da inteligência emocional são importantíssimos. No meu comentário anterior disse "Posicionam-se mais" e não "posicionam-se apenas". Cuidado com os maniqueísmos! O exercício da medicina dificilmente condiciona o carácter ou a visão filosófica do mundo do paciente. Já o jornalista, o professor ou o padre!... E a arte? E a publicidade? Os publicitários... esses perigosos profissionais dos nossos dias!
Sónia, percebo o que queres dizer com o "fotógrafo é que sabe ver" mas não o diria assim. O fotógrafo sabe fotografar (sem o "é que"), e fotografar não é apenas premir o botão. O bom fotógrafo sabe interpretar o momento e capturar a essência do momento. Quem observa a fotografia é que vê. Mas vê sempre através de um filtro (ou de vários) - técnicos e humanos. Sobre isso acho muito boa a noção de "momento decisivo" de Henri Cartier-Bresson.
O Wouter alerta para três fenómenos interessantes:
- A estupidificação das editoras (espero que não seja de todas), que revela uma visão quase primária do fotógrafo. Mais preocupante ainda porque pode ser reveladora de uma estupidificação do(s) público(s) (espero também que não).
- A transformação de um serviço nobre e essencial para a saúde da democracia num produto pronto-a-consumir.
- A transformação do cidadão em jornalista. Não será um verdadeiro jornalista mas apenas uma janela aberta para a notícia.
Sobre a inteligência das máquinas superar a inteligência humana, para já, sou agnóstico. Não é tão simples assim... Estas previsões são acima de tudo marketing e sensacionalismo.
O ser humano é significativamente diferente de um computador. Deixem-me dar algumas pistas:
- O nosso cérebro é significativamente mais lento que um banal computador pessoal. No entanto tem um "processamento" altamente paralelo, que é completamente diferente do modo de processamento dos computadores (que processam essencialmente em série).
- Há tecnologias simples que aparentemente estão desenvolvidas mas que não cumprem minimamente os objectivos. Um exemplo é o reconhecimento de voz. Qualquer computador pessoal (ou mesmo telemóvel) o faz, no entanto nenhum o faz bem.
- A realidade daqui a 10 anos (só 10!) será significativamente diferente da de hoje, tal como o conhecimento técnico-científico existente.
- A biónica (integração de equipamento digitais no ser humano) está mais perto e levanta questões éticas mais profundas, parece-me. Imaginem um cartão de memória para auxiliar o nosso cérebro. Ou uma calculadora integrada. Ou um telemóvel embebido por debaixo da pele. Um gps de localização miniaturizado. Uma máquina fotográfica/digital a registar cada passo. Ou apenas um chip de identificação... Algumas destas coisas estão do outro da rua, num laboratório perto de si! Algumas prontas a entrar no "mercado".
Quanto à distinção entre ética e moral, tens razão João: hesitei no momento da escrita e, no final, creio que, por uma espécie de "hipercorrecção" (pois só muito recentemente me conciliei com essa ideia) acabei por dar preferência ao segundo termo.
Quanto à "postura missionária" na profissão (brejeirices à parte... claro), tenho-a combatido porque acho que tem dificultado o desenvolvimento de uma consciência de classe por parte dos professores e da compreensão da sua situação de exploração no contexto laboral.
No que concerne ao exercício da medicina, continuo com as minhas dúvidas: será que a própria opção pelo tipo de medicina praticada (tradicional ou alternativa; preventiva ou curativa) não decorre de concepções filosóficas e éticas? Agora João, de forma alguma interpretei de forma maniqueísta o teu comentário ou lhe atribuí esse carácter.
Em relação ao modo como me exprimi sobre a fotografia, mais uma vez, dou-te a razão na crítica à forma quase "exclusivista" como me referi a ela. Na verdade um tom tão assertivo (refiro-me ao subjacente à expressão "é que") deve realmente merecer suspeita. No entanto, quando falo em "ver" quero dizer mais que a compreensão técnica: refiro-me a um olhar educado para a plasticidade do visível e simultaneamente educado para a interpretação e para a atribuição de significados ao mesmo. Situo este "ver" no campo da expressão. Sendo certo que o "ver" de quem observa, sendo também criativo, entendo-o mais como uma "leitura".
Quanto à inteligência artificial, gostava de saber onde posso eu arranjar um desses cartões de memória milagrosos ... (brincadeirinha ;-)
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