domingo, agosto 17, 2008

A 17 de Agosto, 160 anos atrás

“Sahiu á luz a Grammatica Hespanola[sic.] para uso dos Portuguezes, publicada por Nicoláo Antonio Peixoto.
Vende-se nas principaes livrarias do Porto e Lisboa. Preço para os snrs. assignantes 480 réis.
Os Diccionarios Hespanhol-Portuguez e Portuguez-Hespanhol sahirão brevemente.
O Editor roga, por este meio aos snrs. correspondentes das Provincias, a quem teve a honra de remetter prospectos, tenham a bondade de fazer-lhe os pedido com a maior brevidade, dirigindo-se á rua de 23 de Julho n.º 145.”

O Defensor Diário, 17 de Agosto de 1848

Por razões tanto linguística como historicamente motivadas, até ao século XIX, a edição portuguesa de materiais para o estudo do Espanhol é extremamente escassa. Considerando, por um lado, tanto a história como a geografia portuguesas e espanholas e, por outro, que desde o século XVI se assiste na Europa a um fenómeno de expansão na publicação de materiais para o estudo de línguas estrangeiras, este estado de coisas revela uma situação de clara anormalidade na relação dos portugueses com a língua espanhola. Durante os séculos que antecedem a Grammatica editada por Nicolau Peixoto, há em Portugal produção editorial para o estudo de línguas estrangeiras, mas trata-se, contudo, de uma produção orientada fundamentalmente para as línguas dos territórios colonizados ou dos países europeus com os quais se mantêm relações comerciais prioritárias.  A generalidade das explicações que têm sido avançadas para esta situação convergem, por um lado, para circunstâncias linguísticas que alimentariam a noção da suposta inutilidade na aprendizagem da língua espanhola e que residem quer na proximidade linguística, quer no suposto bilinguismo vigente durante o período filipino. Por outro lado, de uma forma geral, os estudos existentes também apontam para um sentimento anticastelhano que não há que dissociar totalmente do anseio de superar a sobreposição linguística que o período de bilinguismo gerou e cuja expressão máxima em Portugal foi a denominada “questão da língua.” Ponce de León (2006) relaciona ainda a carência de grámaticas, léxicos e manuais de Espanhol para portugueses com a incipiência da produção metagramatical e metalexicográfica em Portugal relativa à própria língua portuguesa e a outras línguas vernáculas, quando comparada com o mesmo tipo de produção acerca da língua latina. Também é possível que a ideia sedimentada, tanto no exterior como em Portugal, acerca do estatuto de dialecto do Português relativamente ao Espanhol tenha contribuído para esta situação, como equaciona Maria Filomena Gonçalves (2006).
Se bem que, tal como salienta Ponce de León (2005: 675-676) a língua espanhola não esteja ausente da gramaticografia e lexicografia portuguesas que antecedem a obra em estudo, o recurso ao Espanhol não visa a instrução no mesmo. Mesmo os textos que, durante este período, de algum modo contribuem explicitamente para o dar a conhecer junto do público português assumem-se como contributos isolados e embrionários de uma efectiva tradição didacticográfica. Entre eles, contam-se a Porta de línguas de Amaro de Roboredo (Lisboa 1623), a Prosodia in uocabularium trilingue latinum, lusitanicum et castellanicum de Bento Pereira (Lisboa 1634), e o Diccionario castellano y portuguez de Rafael Bluteau (Lisboa 1721). Neste último trabalho, há que destacar o "Methodo breve, y facil para entender Castellanos la lengua portuguesa", que surge entre os textos preliminares do Diccionario. Outro texto que, não obstante publicado fora de Portugal, não deve ser ignorado, quer pelo seu interesse intrínseco, quer pela semelhança formal e de abordagem com o Methodo de Bluteau, é "Of the Portuguese language or subdialect, &c." do galês James Howell e integrado na sua Spanish Grammar (Londres 1662). Avançando para a produção oitocentista, constatamos que esta também deixa registo do hiato que a antecede, como se vê nas Taboas de Declinação e Conjugação para apprender as Linguas Hespanhola, Italiana e Francesa comparando-as com a Portugueza (Coimbra 1821) de José Vicente Gomes de Moura. 
É, efectivamente, só em meados do século que Nicolau Peixoto rompe com este panorama deficitário editando a Grammatica Hespanhola para uso dos Portuguezes (Porto 1848), que, até à data, parece ser a primeira gramática do Espanhol para o público português, reeditada em Lisboa, em 1858, em versão revista e aumentada, por José Maria Borges da Costa Peixoto, filho de Nicolau Peixoto, e complementada ainda pelo Guia da conversação Hespanhola para uso dos Portuguezes (Lisboa 1860), cuja edição é também da responsabilidade de José Peixoto. A estas obras, há que colocar em hipótese a adição dos Diccionarios Hespanhol-Portuguez e Portuguez-Hespanhol, aos quais, anunciando para breve a sua edição, é feita referência quer na contra-capa do texto de 1848, quer nos anúncios de publicação da Grammatica que se podem encontrar nos números de dezassete, dezoito e dezanove de Agosto de 1848, do Defensor Diario. Da análise destas notícias se conclui que a obra gozou de relativa projecção não só pelo facto de que se encontrou ininterruptamente anunciada durante quatro dias, mas também pela alusão que nas mesmas notícias é feita à divulgação da obra. É igualmente de considerar para suporte desta leitura a referência nestes anúncios (e repetida na contra-capa da primeira edição) acerca do prestígio dos seus locais de venda. Não desconsiderando o facto de que, como observa Ponce de León (2006; 2007: 63), não há conhecimento de que tal dicionário tenha chegado a ser publicado ou mesmo dado por concluído, nem sequer, de ser da autoria de qualquer dos Peixoto, tal, contudo, não parece pôr em causa que, independentemente da consideração ou não dos mesmos entre a obra dos editores em estudo, a articulação e complementaridade entre estas obras apontam para o que Ponce de León (2005: 677; 2006) concebe e designa como um “projecto didáctico” constituído pela Grammatica, o Guia e, eventualmente, os Diccionarios.


Referências

O DEFENSOR Diário (17, 18 e 19 de Agosto de 1848),   Porto, Typographia Commercial.
Gonçalves, Maria Filomena (2006), ''El portugués como dialecto del castellano: historia de una teoría entre los siglos XVII y XVIII'', in Antonio Roldán Pérez, Ricardo Escavy Zamora, Eulalia Hernández Sánchez, José Miguel Hernández Terrés y Mª Isabel López Martínez (eds.), Caminos actuales de la historiografía lingüística. Actas del V Congreso Internacional de la Sociedad Española de Historiografía Lingüística, Múrcia, Universidade de Múrcia, v. 1, pp. 729-741.
Ponce de León, Rogelio (2005), “Textos para la enseñanza-aprendizaje del español en Portugal durante el siglo XIX: una breve historia”, in Actas del XV Congreso Internacional de ASELE, Sevilha, Faculdade de Filologia da Universidade de Sevilha, pp. 675-682.
------------------------------ (2006), "La gramática y el léxico en la enseñanza del español en Portugal durante el siglo XIX", Conferência proferida no Fachbereich Romanistik, Universität Salzburg, 17 de Maio de 2006, Inédita.
------------------------------ (2007), “Materiales para la enseñanza del español en Portugal y para la enseñanza del portugués en España: gramáticas, manuales, guías de conversación (1850-1950)”, G. Magalhães (coord.): Actas do Congresso RELIPES III, Covilhã/Salamanca, UBI/Celya, pp. 59-86.

(Este post constitui uma citação revista e adaptada de fragmentos do trabalho apresentado pela autora como dissertação de Mestrado)

Sónia


Sem comentários: