terça-feira, junho 20, 2006

Eugénio


Há um ano atrás, uma azáfama de mails, sms e conversas apaixonadas discutia a perenidade dos que nos deixaram na madrugada de 13 de Junho de 2005. Toda essa agitação daria origem a um blog, hoje extinto, e muitas outras discussões, que confirmaram uma amizade inabalável e minaram uma afeição que se esfumou.


Mas hoje apetece-me voltar em tom de solilóquio àquele velho assunto e reafirmar o que disse quando nem sequer sonhava escrevinhar na blogosfera. É que, apesar do esforço dos media com documentários de inegável valor histórico e inúmeros textos mais ou menos laudatórios e evocativos, Álvaro Cunhal acabará por se tornar apenas numa nota de pé de página dos livros de história, ou nem isso, e a poesia de Eugénio de Andrade continuará a ser infinitamente lida e amada.


E há também a figura maior do homem que foi Eugénio e que a crónica de António Lobo Antunes recordada no Kontratempos tão bem evoca:

«O poeta Eugénio de Andrade está muito doente. É meu amigo e não tenho coragem de o visitar. Quando ia à sua casa, no Passeio Alegre, um espaço de cuidadosa brancura diante das palmeiras e do mar, recebia-me com vinho fino, biscoitos, livros, pequenas atenções que me tocavam, conforme me tocava a sua delicadeza, a sua fidalguia. A mesa de mármore para escrever. Nunca me disse mal de ninguém e a vaidade que o habitava, tão ingénua, comovia-me. (...) A sua solicitude e a sua ternura em relação a mim eram infinitas. Já doente e estando eu em Roma para um prémio, o padre e poeta José Tolentino Mendonça, que ele apreciava grandemente e é um dos poucos que admiro e respeito, contava-me que o Eugénio o chamava, preocupado que eu estivesse bem. Punha, na camaradagem, um desvelo fraterno (...) Dele recebi, durante anos e anos, inúmeras provas de estima. Censuro-me não o visitar agora; é que não suporto vê-lo acabar assim, reduzido a um pobre fantasma titubeante. A ele, que tanto prezada a beleza e a sua própria beleza (o Eduardo Lourenço, amigo de ambos - E então chegou-nos a Coimbra aquele Rimbaud) a doença resolveu destruí-lo, horrivelmente, no que mais lhe importava, tornando-o um Rimbaud desfigurado, dependente, trágico (...). Ao Eugénio prefiro lembrá-lo como o conheci: orgulhoso, altivo, falando-me de jacarandás e frésias, amando (e era verdade) o 'repouso no coração do lume'. E, depois, havia pequenos actos que o definiam inteiro: uma das ocasiões em que fui ao Porto encontrei um livro de Jorge de Sena, um livro póstumo, horrível, em que Sena atacava companheiros de viagem (Cesariny e Vitorino Nemésio, por exemplo, muito melhores artistas do que ele) de um modo tão vil que me indignou. Referi o livro ao Eugénio. Ele ficou longamente em silêncio e, depois, tirou o seu exemplar de baixo de um móvel e poisou-o no sofá. Segredou - Tinha-o aqui escondido, sabe, porque não queria que pensasse mal do Jorge. (...) Reparo, agora, que estou a relatar tudo isto no passado, como se o Eugénio tivesse morrido. Talvez porque o homem que continua vivo não é ele. Talvez por pudor meu. Talvez porque o fim de um amigo me seja difícil. (...)».


E curiosamente, dias depois de ter relido este texto, eis que entre os ravioli e o gelado de nozes com molho de chocolate de uma noite recheada de poesia (desculpem referir constantemente os pormenores gastronómicos da minha parda existência...), encontro o poema que Eugénio escreveu após a notícia da morte de Sena:



A JORGE DE SENA,
NO CHÃO DA CALIFÓRNIA


É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?


Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
-mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em tio rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?


Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te.
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.


No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.


Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração
fiel às palavras da tribo.


Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior que tu – concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.


Agosto, 1978


[evva]

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