segunda-feira, junho 19, 2006

Para ler, reler e guardar


Lembro-me agora de todos os teus gestos, o olhar sobre os muitos netos espalhados pela casa, comendo pão com doce de tomate, explorando os mosaicos da varanda, debruçados da janela para a rua com poucos carros. Éramos todos tão pequenos e tu tão lúcida, a avó em cujo colo cabíamos todos à vez, a avó fustigada pela vida mas sempre generosa, de braços abertos, infinitamente terna. Havia um cheiro naquela casa que não encontrei em mais lado nenhum: um cheiro de quartos na penumbra e mobiliário escuro, de décadas atravessadas com esforço e entrega absoluta aos outros. Lembro-me agora das coisas mais insignificantes: um sofá cor-de-laranja que refulgia sob o sol da tarde, o quadro que representava um barco perdido na tormenta em alto mar, um banco de madeira na cozinha, conversas de adultos que eu não percebia. E a bondade da minha avó confundido-se com a casa, emanando das paredes como matéria luminosa, beijos e abraços e afagos, enquanto o Alentejo entrava pelas janelas, já tão perto de Lisboa.Agora essa casa há muito desabitada ficou ainda mais distante, ilha que só a memória resgata. Morreu a última avó, a avó que a doença foi tornando ausente, numa espécie de morte antes da morte, num afastamento progressivo, lento e cruel. Algures um fio partiu-se, fechando a história de uma geração, enquanto se abrem os diques da tristeza adiada. Lembro-me agora de todos os teus gestos, avó. Vejo-te atravessando a escuridão da infância, belíssima. E apaziguas-me, novamente, nestas horas de despedida e melancolia.

José Mário Silva, no A Invenção de Morel»

evva

Sem comentários: