quinta-feira, junho 01, 2006

Se um dia coligirem os melhores textos da blogosfera, de certeza que este lá estará

Flashback

Por RAF.

«Cara Sinapse,

Nos meus Verões, apanhava amoras no Douro para a minha irmã mais velha fazer doce. Acordava antes das oito e meia (hora a que soava um silencioso e discreto recolher obrigatório do que havia na mesa do pequeno-almoço); e garanto-te que não era necessário despertador, esse objecto triturador de tímpanos e indutor de AVC’s, porque torradas no forno pinceladas com manteiga previamente derretida faziam muito mais por me acordar do que dez galos a cantar em uníssono, quanto mais esses subprodutos fabricados na China ou em Taiwan, inventados por um sádico (certamente um adepto do neo-capitalismo selvagem), que retiram qualquer glamour à alvorada. Vivia assim o dia como não o faço hoje, perdido que fico nas férias a resmungar no vale dos lençóis.

Tomava banho no Corgo, ainda o comboio serpenteava até Vila Real, em locais onde os pais de hoje jamais deixariam ir os seus filhos sozinhos. Saía de espingarda de chumbos para apanhar passarecos. Nunca acertei em nenhum. Talvez por isso seja agora contra a caça, usando argumentos dignos para camuflar a minha ausência total de pontaria.

Depois do almoço, à hora do calor, recolhia à "loja" ou ao lagar, onde um frio bom convidava à leitura. Ou a uma partida de xadrez. King. Póquer, literalmente a feijões, até ser banido pelo Conselho de Pais: era demasiado interessante e perturbava outros hábitos mais calmos; as peças do jogo acabaram no tacho, misturadas com tripas.

Após o lanche, o pátio era dominado pelo esférico; no fim das férias, as paredes, provisoriamente balizas, tinham de ser novamente caiadas; os grandes golos eram aqueles que traziam consigo a queda vertiginosa de um bom bocado de cal. Quando calhava, descia pela estrada de terra ou a cortar caminho pelas vinhas até Santo Xisto, ao Manel da Venda, para levar o correio ou comprar o que houvesse: em geral, não havia nada: vinho a copo, de um vermelho que manchava, bagaço ou cerveja não faziam parte da minha dieta; ficava tonto só com cheiro; a minha primeira bebedeira foi assim olfactiva; questionava-me onde tinha posto o Manel os seus dentes; e como é que tão bêbado nunca se enganava no troco. Hoje, mando e-mails.

Foi nas férias de verão que descobri que os gatos caem sempre direitos, independentemente da altura e do carácter voluntário ou não do respectivo salto.

Nesta época da vida reservei ainda o meu bilhete de ida para o Céu (em classe executiva); Missa e Terço faziam parte da rotina diária. Havia tempo até para nos lembrarmos de Deus. Desde que não mate ninguém e não desvie subsídios da PAC estou certo que os Jardins do Éden já não me escapam!

Ao fim do dia, gostava de olhar ao longe as Serras das Meadas e do Gerês; durante anos, pensava com o meu primo Miguel que um dia a haveríamos de subir. E subimos! Desde a estação da Rede, até à Ermida, pelos trilhos desenhados nas cartas militares!

À noite, conversávamos nos terraços, vendo a estrelas; televisão, às vezes, quando a antena caprichosa o permitia, captando o sinal; com sorte, alimentávamos a síndrome de Nero, apreciando o fogo nas montanhas em redor, num tempo em que os incêndios eram sobretudo fruto da acção da Natureza ou da mera incúria, e não da maldade e da ganância dos homens.

Nas férias havia também tempo para o mar. Nas praias de Leça, Beijinhos e Fuzelhas, a água era gelada, mas curiosamente não parecia. As ondas eram enormes, muito maiores do que agora; o mar não proibia nem aplicava coimas; colaborava com os pais, e fazia por animar as crianças. O vento era sempre presença assídua, pelo que nos fazíamos acompanhar de pesados "pára-ventos", os arqui-inimigos da "Nortada"; e que permitiam além do mais delimitar o nosso pedaço de areia; quando não havia vento, então era porque tinha fugido o sol; nesses dias tinha na mesma de pôr creme porque, segundo a minha mãe, o nevoeiro queimava com mais força; o que era para mim um grande mistério pois não via o sol nem sentia o calor a aquecer-me a pele; foi assim que aprendi o que era a Fé: acreditar naquilo que a minha mãe me dizia, mesmo que não fizesse sentido nenhum. Ela também me explicava que as praias do Norte me faziam bem, "porque tinham iodo".

Talvez por estar carregadinho de iodo, na praia, apaixonava-me, dia sim, dia não. Nada contudo que interferisse com as rotinas diárias: apanhar "ranhosas" e caranguejos, de baldinho na mão; coleccionar "sameiras" (a que o meu primo de Lisboa chamava "caricas"; e ainda dizem que somos um país uno; tornei-me na praia um fervoroso adepto da "Regionalização"); esférico: horas atrás do esférico; e piadinhas, centenas de histórias e piadinhas (efeitos colaterais do excesso de iodo, talvez). O meu irmão mais novo, esse preferiu aprender sozinho a ler no meio da areia, esvaziando de responsabilidade e necessidade a função do seu professor primário; foi ele o primeiro a provar-me a inutilidade do Estado.

Lembro-me, como tu, das vendedoras ambulantes, que impingiam os seus bolos ou berravam, "Pipocas ou Batatinhas! Pipocas ou Batatinhas!". O pregão que mais me marcou, contudo, surgia ao longe, cada vez mais perto, cantado por uma velha senhora, carregada de saiotes e lenços, que se arrastava desde Leça até à Boa Nova, e com uma pronúncia que não enganava, entoava: "Olhaaaai os biscoitinhos de Baluanguuuu; Olhaaaai os biscoitinhos de Baluanguuuu". Baluangu. Demorei dez anos a perceber onde fica...

Este fim-de-semana vou ao Douro.

Rodrigo Adão da Fonseca»
evva

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