terça-feira, fevereiro 14, 2006

Frases inaugurais, em Português

No Geração-Rasca, aberturas memoráveis da ficção em língua portuguesa. Eis algumas das minhas favoritas, numa lista alternativa:

«Aqui o mar acaba e a terra principia»
do meu romance preferido de Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

«Começou por me dizer que o seu caso era simples - e que se chamava Macário...»
Singularidades de Uma Rapariga Loura, Eça de Queirós

«Muitas vezes, pela tarde, quando o Sol, transpondo a baía de Carteia descia afogueado para a banda de Melária, dourando com os últimos esplendores os cimos da montanha piramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a flutuante estringe o presbítero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira-mar.»
Eurico o Presbítero (1844), de Alexandre Herculano, páginas que agitaram a minha imaginação adolescente e fixaram para sempre uma paixão desmedida e incurável pela Idade Média

«Vespera de Pinticoste foi grande gente asũada em Camaalot, asi que podera homem i veer mui gram gente, muitos cavaleiros e muitas donas mui bem guisadas»
Demanda do Santo Graal (anónimo, séc. XIII)

«Fecharam os telhais.»
Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, o neo-realismo poético

Mas a abertura que elejo como a melhor de sempre de um romance em língua portuguesa é de Fernando Assis Pacheco, em Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993). Não resisto a transcrevê-la na íntegra, só ela dava um romance inteiro:
«Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.
O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.
"Caramba", disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, "é à segoviana!".
"Mas não lhe pões o dente", cortou o outro.
Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:
"É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno".
Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquelo momento, teria respondido:
"Assar-lhe até a memória"»

evva

P.S.: Quis incluir também as primeiras linhas do Finisterra (1978), de Carlos de Oliveira, mas não o encontrei. Se alguém não se importar de mo devolver, agradeço desde já.

1 comentário:

Esplendor disse...

Nem toda a ficção neo-realista é poética, não senhor. Há por aí muita 'denúncia social' que não resistiu à escultura do tempo.

evva