Da sala de aula para o cinema
Entre les murs, de Laurent Cantet, Palma de Ouro em Cannes (uma das mais consensuais dos últimos anos), propõe-se analisar a difícil relação entre um professor de Francês e uma turma do 8.º Ano de uma escola de um bairro problemático de Paris.
Reflectidas nos alunos, as vicissitudes das famílias: a mãe de Souleymane (um aluno cuja família emigrou do Mali), não fala nem lê francês e assina ‘às cegas’ os sucessivos recados que os professores enviam na caderneta (Souleymane vai para as aulas de mochila vazia e as faltas de material e os problemas disciplinares sucedem-se); a família de Wein (excelente aluno) vive ilegal em França e sofre um duro golpe aquando da prisão da mãe pelos serviços de emigração, correndo o risco de ser deportada para a China natal.
À medida que o filme avança, a tensão entre, por um lado, o professor de Francês e os seus alunos e, por outro, alunos de diferentes etnias (da África branca à África negra, passando pela cultura Ibérica, muito ténue nas personagens de Esmeralda e de um aluno de ascendência portuguesa[1], e pelo Extremo-Oriente) agudiza-se. Os adolescentes vão colocando em causa a aplicação prática das matérias leccionadas (para que serve o Imperfeito do Conjuntivo?), a escolha dos nomes próprios que o professor utiliza nas frases para exemplificar os conteúdos que lecciona (por que não eleger nomes árabes como Fatou ou Ahmehd, mais próximos do quotidiano dos alunos?) ou a possível invasão de privacidade que o simples exercício ‘auto-retrato’ para eles constitui. Com o aproximar da Taça das Nações Africanas, as discussões (e algumas agressões) entre adolescentes repetem-se, sintoma de diáspora desenraizada. Os alunos defendem com violência as cores da sua ancestralidade, mesmo que nunca tenham posto os pés no país onde pais e avós nasceram.
O professor vai tentando acalmar os ânimos, respondendo a todas as dúvidas e questões que os alunos colocam (numa postura demasiado dialogante, a meu ver), mas a sua atitude, demasiado facilitadora de debates em prejuízo da matéria a leccionar, acabará por atraiçoá-lo, quando, em plena aula, as delegadas de turma (que, em França, estão presentes nas reuniões de avaliação e não apenas nas intercalares!) quebram o sigilo (?), confrontam o professor com as afirmações que proferiu na reunião, acusando-o de desconsiderar um dos alunos (Souleymane, que o professor apenas tentara defender) e a violência eclode dentro da sala.
Para além da perda da autoridade do professor que exemplarmente ilustra, o interesse do filme reside, como é óbvio, na possibilidade de comparar os dois sistemas de ensino, francês e português. Não pude deixar de sorrir ao ver a burocracia daquelas reuniões, a pueril catalogação de ‘classe difficile’ (se aquilo é uma turma difícil, vou ali e já venho; «espreitem os meus CEFs», ouvia-se a meu lado, «ao menos estes calam-se de vez em quando») e a preocupação de uma encarregada de educação que teme que o filho seja no futuro prejudicado pela mediana exigência da escola pública. No final, um murro no estômago: a impotência para lidar com as dificuldades de aprendizagem. Mas será mesmo assim? Um doc-filme obriga-nos a colocar estas questões.
Devo confessar que, do ponto de vista cinematográfico e para quem como eu venera algumas obras-primas de Manoel de Oliveira, começam a cansar-me estes filmes-documentário, a câmara nervosa ao ombro, a acompanhar os movimentos bruscos das personagens. O retrato social sobrepõe-se muitas vezes à pretensão/qualidade estética, que o realismo social do cinema inglês, de Ken Loach a Mike Leigh, contrariamente a tantos realizadores que por aí pululam, conseguiu quase sempre harmonizar. Vá lá que Laurent Cantet não cai no exagero (a câmara trémula só me aborreceu duas ou três vezes) e o seu grande mérito é a leve sensação de huis clos, do reduzidíssimo espaço em que as personagens se movem, física e psicologicamente (depois de ver o tamanho daquela sala de aula, o acanhamento da biblioteca, a exiguidade do recreio que é simultaneamente o espaço das aulas de Educação Física e os 12 metros quadrados da sala de professores, nunca mais me queixo). Evitou também cair no estereótipo: aqui não há personagens-tipo, nem paninhos quentes para com os filhos de Rousseau.
Bom ou mau, o que para um objecto artístico é sempre discutível, a importância relativa de Entre les Murs advém não só das questões que evoca mas sobretudo das intenções que anima. Mais do que enviar uma cópia à Ministra da Educação, para que avalie este professor à luz do seu brilhante modelo de avaliação do desempenho docente, apeteceu-me reler La Goutte d’Or, de Michel Tournier (existe em tradução portuguesa, A Gota de Ouro, numa edição D. Quixote). O desconforto da mãe de Soulyemane ao ser fotografada pelo filho recordou-me a viagem de Idriss, jovem africano alarmado pela crença de que uma máquina fotográfica lhe roubara a alma, após uma turista francesa o fotografar num oásis do Saara, e que parte para França em busca da sua imagem capturada.
evva
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