terça-feira, novembro 25, 2008

O erro do 25 de Novembro

A grande debilidade do 25 de Novembro, para além de não ter conseguido impedir o avanço do marxismo legislativo, foi não ter avançado para a ilegalização imediata do Partido Comunista Português e de todos os partidos que não aceitavam um regime democrático. Rui Ramos, num texto publicado na Atlântico de Dezembro de 2006 sobre Sá Carneiro e o 25 de Novermbro, e que o Blogue Atlântico hoje transcreve, explica porquê:

«O desafio à revolução:
Sá Carneiro e o 25 de Novembro


Por RUI RAMOS

É curioso que as direitas comemorem, simultaneamente, o golpe de 25 de Novembro de 1975 e a memória de Francisco Sá Carneiro. O 25 de Novembro evitou uma guerra civil? Sem dúvida. Mas evitou também, através de um pacto de transição, a ruptura com o património do Período Revolucionário Em Curso (PREC), logo a seguir constitucionalizado. A revolução parou, mas não recuou. Foi contra esse património revolucionário, naquilo que significava de tutela militar e limitação da iniciativa dos cidadãos, que lutou Sá Carneiro. Aqueles que nele se revêem deveriam talvez comemorar outro Novembro, o de 1977, quando Sá Carneiro, ao abandonar a presidência do PSD, iniciou a ruptura com o pacto de transição instituído em Novembro de 1975. Uma ruptura que a morte de Sá Carneiro, a 4 de Dezembro de 1980, impediu fosse totalmente consumada.





O fracasso de um “partido dominante”

Para compreender o 25 de Novembro de 1975 e Sá Carneiro é necessário começar por rever a história do chamado PREC. Esta história existiu, durante anos, sob a forma oficial de uma lenda heróica. Álvaro Cunhal, a cavalo do mítico poder do seu partido, o “único partido com organização”, teria tentado tomar o poder. Mário Soares resistiu-lhe. O 25 de Novembro representaria a derrota final do PCP no último minuto. Sá Carneiro não faz parte desta saga. De facto, esta história oficial impede de perceber Sá Carneiro. Para isso, será preciso outro ponto de vista. De facto, nem o desvio revolucionário dependeu simplesmente da força do PCP, nem o 25 de Novembro se traduziu por uma verdadeira “normalização”, no sentido da consagração definitiva do modelo de sociedade europeu e ocidental.
Curiosamente, se havia um político com futuro promissor em 1974, a seguir ao golpe de 25 de Abril, parecia ser Sá Carneiro. Braço direito do chefe do governo provisório, Adelino Palma Carlos, e por essa via do general Spínola, foi o primeiro político, em democracia, a viver na residência oficial do primeiro-ministro em S. Bento. Aos 39 anos, ficara famoso com a sua guerrilha parlamentar a favor de um Estado de direito e do pluralismo político na Assembleia Nacional, entre 1970 e 1972. O seu novo partido, o PPD, parecia capaz de unir uma parte da elite oposicionista, sobretudo velhos republicanos, e uma parte da elite do Estado Novo, especialmente jovens tecnocratas e notabilidades locais, numa força reformista não-marxista. Houve quem, por isso, visse antecipadamente o PPD como o “partido dominante” de uma “transição democrática” em que se esperava do “voto popular” a determinação do destino do “ultramar”, e as grandes “opções sócio-económicas”.
Nada se passou assim. Sá Carneiro passou dois meses no governo, em Maio e Junho de 1974. Ficou então identificado com o projecto de arranjar para Spínola um mandato eleitoral, que permitisse ao general ultrapassar os oficiais revolucionários do MFA. Este esforço sujeitou-o à sua primeira derrota. O problema de Sá Carneiro é que Spínola, em relação ao ultramar, alimentava aspirações que não garantiam o fim da guerra em África. Os oficiais do MFA desejavam pôr termo às operações militares em África. Acabaram assim por se identificar com os partidos da esquerda marxista, os únicos dispostos a subscrever a retirada imediata do ultramar. Até 1974, a esquerda marxista estivera mais ou menos isolada e confinada a alguns sindicalistas, profissionais liberais e estudantes universitários. A força que subitamente adquiriu derivou do modo como uma opção militar em África lhe abriu as portas do Estado. O “centro” concebido por Sá Carneiro falhou pela dificuldade de aceitar a solução expedita da questão ultramarina. E ainda por outra razão. Depois da alta dos preços do petróleo, parecia previsível uma fase de austeridade. A esse tipo de governação, convinha a cumplicidade dos partidos marxistas, que controlavam os sindicatos. Sá Carneiro pareceu assim fora de todas as jogadas. Na direcção do PPD, muita gente atribuiu o fracasso ao seu feitio assomadiço e ao seu “pessimismo” sobre o MFA. Sá Carneiro demitiu-se uma primeira vez da direcção do PPD a 17 de Julho. Não lhe aceitaram a demissão, mas ficou claro que o partido não era inteiramente seu.

Em busca de uma “transição pacífica”

Fora de Portugal por doença, Sá Carneiro não acompanhou o PREC entre Fevereiro e Setembro de 1975. Quando regressou, já Vasco Gonçalves tinha sido liquidado pela conjugação, em Agosto-Setembro, das facções representados por Otelo (o grupo do COPCON) e Melo Antunes (o grupo dos Nove). Toda a luta política parecia então determinada pela dança das facções do MFA: unidas contra Spínola, tinham-se dividido perante o PCP. O domínio do Estado dependia então das boas graças dos militares. O fim de Vasco Gonçalves deveria ter significado a baixa da maré do PCP, e a ascensão do PS, vencedor das eleições para a Assembleia Constituinte. Em desespero, o PCP tentou manipular Otelo. No 25 de Novembro, o PCP perdeu mais essa carta. Mas não perdeu logo o jogo.

Melo Antunes e o PS beneficiaram sempre do facto de os conservadores estarem disponíveis para os secundar em posição ancilar e sem reclamarem créditos: foi a Igreja quem levantou o norte em Julho, mas Mário Soares que chefiou a luta; foram os spinolistas que deram força operacional a Melo Antunes em Novembro, mas este que apareceu na televisão a definir o rumo dos acontecimentos. Isso correspondia também à opção dos inimigos externos do PCP na América e na Europa ocidental, que preferiram conter a revolução em Portugal investindo em Soares.

Por isso, Sá Carneiro não foi exactamente bem-vindo nos arraiais da resistência ao PCP e a Otelo. Mais do que um reforço, pareceu uma distracção para o arranjo estabelecido, em que o “bom” MFA, de Melo Antunes, e a “boa” esquerda, de Mário Soares, se tinham reservado os papéis principais na “libertação” de Portugal.

Em Setembro, na sua primeira conferência de imprensa em Lisboa, Sá Carneiro exaltou a “reacção popular” contra o “domínio comunista”, que foi “um evento histórico dos mais notáveis dos últimos tempos”. Era um tabu, porque os adversários dos comunistas em Lisboa não costumavam congratular-se com o incêndio das sedes do PCP no norte. Pior do que isso, Sá Carneiro atreveu-se a exigir que se retirassem as consequências lógicas da resistência ao PCP: se era verdade que conspirara para tomar o poder, o PCP devia ser expulso do governo; tendo facilitado a deriva revolucionária, a tutela do MFA, expressa pelo pacto com os partidos, devia acabar; havendo-se disposto a encabeçar as manifestações contra o “gonçalvismo”, o PS devia declarar claramente a sua ruptura com a restante “família marxista”, e optar pelo campo democrático ocidentalista. Ora, não estava no guião do filme que se chegasse tão longe. A lógica de Sá Carneiro foi recebida como uma loucura.

No início do rescaldo do 25 de Novembro, Melo Antunes declarou logo que o PCP mantinha o seu lugar. Porquê? Porque Melo Antunes, tal como o PS, temiam perder o seu papel de árbitros do poder, se deixassem os seus auxiliares de direita liquidar o PCP. Apresentavam-se como uma força de charneira, o intermediário entre dois blocos, a direita e o PCP, que sem eles se lançariam numa pavorosa guerra civil.

A esta tese, juntava-se outra, que o PCP também subscrevia: a de que a democracia, em Portugal, visto o compromisso das direitas com o salazarismo, apenas poderia ser alcançada desde que fosse garantido o domínio político da esquerda, com a socialização da riqueza. Só que este processo deveria ser concebido como uma “transição”, gradual, prudente, até pluralista, evitando-se as brutalidades que o PS e Melo Antunes atribuíam ao PCP. Melo Antunes explicou que, depois do 25 de Novembro, estavam “restauradas as condições” para o “MFA ser o portador de um projecto nacional de transição pacífica para o socialismo, no qual colaborem todos os partidos”. E nos meses seguintes, esforçou-se para que os partidos aceitassem a tutela do MFA.

A tutela não passou sob a sua forma mais grosseira de 1975, mas os partidos não lhe resistiram sob um aspecto mais respeitável: um presidente da república com vastas competências e prerrogativas, ficando o lugar reservado para um militar; e o exercício pelo MFA das funções de tribunal constitucional, sob a forma de Conselho da Revolução. A constituição, entretanto, sacralizava o “gonçalvismo”, das nacionalizações à reforma agrária. Por isso, Cunhal não se sentiu obrigado a confessar uma derrota no 25 de Novembro. Manteve o seu ministro e os seus seis secretários de estado. E Portugal, como explicou repetidamente nos anos seguintes, não ficara a ser uma “democracia burguesa”. Tal como ele tinha prometido que nunca seria em 1975.

O “perturbador da harmonia democrática”

No dia 25 de Novembro, Sá Carneiro não estava em Portugal. Estava na Alemanha, a tentar convencer o governo alemão a investir no PPD. Todos os partidos – incluindo o PCP, apesar dos mitos – tinham sido montados com dinheiro estrangeiro a partir de posições no Estado. O PPD andara no governo, mas era o único grande partido português sem enquadramento em internacionais partidárias – e isto queria dizer, em primeiro lugar, sem dinheiro. Não era também um grande instrumento para subir ao poder. Tinha ficado em segundo lugar nas eleições de Abril de 1975, mas era um partido regional: 80 por cento dos seus 10 mil militantes eram do norte e das ilhas. Muitos dos seus dirigentes estavam convencidos de que a companhia do MFA e do PS era a única forma de granjear influência. Sá Carneiro, que rapidamente se incompatibilizou com Mário Soares e começou a atacar o “melo antunismo”, não parecia capaz de absorver essa óbvia sabedoria. Foi forçado a recuar. Deixou-se convencer por um delegado de Melo Antunes de que o PPD não deveria sair do governo em protesto pela permanência do PCP. Em Dezembro, uma parte dos seus correligionários abandonaram-no, na primeira das duas grandes cisões do PPD.

Mesmo os que ficaram ao seu lado se recusaram a segui-lo, quando ele lhes sugeriu votar contra a constituição. Não queriam correr riscos. Nem o país, no fundo. Sá Carneiro foi, por isso, o maior derrotado da eleição de Abril de 1976, que revelou um país que queria preservar os equilíbrios de 1975, e ainda via no PS o árbitro desses equilíbrios.

Sá Carneiro viveu no momento de maior mudança de Portugal no século XX, o momento em que chegava ao fim a antiga sociedade rural e o império, e começava uma democracia de massas. Essa democracia foi, porém, inicialmente concebida como uma democracia de facção, em que um grupo de iluminados, sob protecção militar, se permitia mediar entre ideias opostas, e assim poupar aos portugueses a responsabilidade e os riscos do debate. Em 1975, a sociedade portuguesa exibira o seu pluralismo. O novembrismo assentou no esforço de constituir uma vida política imune ao conflito e à tensão que poderiam daí derivar. O salazarismo eliminara o conflito através da repressão. O novembrismo propunha-se eliminá-lo pela capacidade de mediação dos seus protagonistas, Soares e o novo presidente da república, o coronel Eanes. Partia do princípio de que a direita estaria disposta a admitir esse protagonismo, desde que os seus tecnocratas e empresários fossem alcançando posições e fazendo negócios, convencidos de que não podiam dispensar o guarda-chuva de esquerda.

Desde Fevereiro de 1977, a economia do país assentou na tentativa de ganhar competitividade externa à custa do embaratecimento do trabalho. Como desenvolver uma política dessas sem caução da esquerda? De um lado, havia a constituição, do outro o pedido de adesão à CEE. Uma apontava para o socialismo completo, o outro para o Estado social com economia de mercado. O truque era, sob a guarda da esquerda militar e civil, fazer de conta que não havia contradição. Quando falavam do “socialismo”, os homens da esquerda militar e civil do novembrismo recusavam todas as comparações, da Escandinávia à URSS. O socialismo deles era um sistema tão original que ainda não existia em lado nenhum do mundo. Parecia-se com tudo – e com nada. À vontade do freguês.

Sá Carneiro contrariou tudo isto. Foi, como o classificou Eduardo Lourenço em Setembro de 1978, o “perturbador nato da harmonia democrática”. Para romper o bloqueio imposto à vida política pelo pacto de transição, apostou nas mais variadas miragens: uma maioria presidencial sob Eanes, um bloco central com o PS, e um bloco de direita com o CDS. Tudo foi falhando, e ele foi insistindo. É sempre tentador examinar estas manobras como um mero jogo. Ou como uma questão de carácter: Sá Carneiro seria alguém que gostava de “rupturas” e de “confrontos”. Mas não é exacto reduzi-lo a um percurso ditado por contingências externas e instabilidades íntimas. Numa ditadura pode-se talvez fazer carreira assim, mas não numa democracia, onde é preciso convencer e liderar massas de cidadãos. Sá Carneiro tinha uma visão das coisas. Foi essa visão que acabou por inspirar e formar a maioria eleitoral de Dezembro de 1979.

A longa marcha para essa vitória começou no Outono de 1977. Foi um ano de enorme desalento, com a crise da balança de pagamentos, inflação e desemprego. Subitamente, os compromissos do novembrismo tornaram-se insuportáveis para muita gente. No entanto, os correligionários de Sá Carneiro no PPD (então já PSD) queriam-no ver ainda a mendigar atenções a Eanes e ao PS. A 15 de Outubro, o presidente Eanes anunciou a “democracia socialista” como objectivo nacional. Foi então que Sá Carneiro rompeu. A 7 de Novembro, decidiu abandonar o PSD. No Conselho Nacional do partido, de 12 de Novembro, em Lisboa, deixou a presidência. Explicou que não voltaria a dirigir o PSD sem que o partido tivesse como objectivos a revisão da constituição, e a eleição de outro presidente da república. No mesmo momento, o coronel Pires Veloso saiu do comando da região militar do norte. Sentiu-se então o reacender da “reacção popular” de 1975. Sá Carneiro identificou-se com essa reacção. Foi o momento da sua verdadeira emergência. Em 1974, tinha sido o conselheiro de um general, como tantos outros quiseram ser. Em 1977, tornou-se um líder popular, identificado pelas sondagens como o chefe de partido mais estimado do país.

De onde veio esta popularidade? Segundo Eduardo Lourenço, escrevendo numa cada vez mais melancólica revista de esquerda, do facto de Sá Carneiro ser o único político português que sabia o que queria, ou melhor, que sabia o que não queria: “o que ele não quer é o socialismo, mesmo sob a forma travestida e irreconhecível que ele tem assumido entre nós”. E reconhecia: “deve-se agradecer a Sá Carneiro ter tido a coragem de desafiar a revolução”. Lourenço dizia isto esperando vagamente que, do lado da esquerda, surgisse uma resposta à altura. Não surgiu. As esquerdas limitaram-se a fugir para junto de Eanes, o representante último da transição à maneira do 25 de Novembro. Mas mesmo os companheiros de Sá Carneiro desconfiaram do “desafio”. Também eles sabiam o que não queriam: os riscos de desafiar a “harmonia democrática”.

O manifesto eleitoral da Aliança Democrática de 1980 esclareceu o novo rumo: “contra a burocracia socialista, pela mudança libertadora”. A grande ideia era a de que “não há liberdade política sem um amplo espaço de liberdade social e económica”. A “iniciativa privada na sociedade e na economia tem de encontrar condições para exprimir a sua criatividade, para exercer o sentido do risco e da responsabilidade, para se confrontar com um clima de sã concorrência”. Ora, isto era a inversão de tudo aquilo que os intelectuais portugueses sempre haviam dito no século XX. Ainda em 1974, acreditara-se que a liberdade política dependia da socialização e do condicionamento estatal da iniciativa privada. A AD sugeria ainda, contra a sabedoria ancestral do regime, que numa “sociedade aberta e pluralista”, a “existência de tensões” deveria ser encarada positivamente, “de modo construtivo”. Por isso, propunha-se “pôr um ponto final no regime de transição em que temos vivido, e que só em parte se pode considerar democrático”. A actualidade de tudo isto é um triste sinal do que ficou por fazer.
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evva (sublinhados meus)

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